Entre 1972 e 1975, no Estado do
Amazonas, dois mil indígenas da etnia waimiri-atroari sumiram sem vestígios
Desde o início de 2011, Schwade
passou a divulgar uma série de artigos em seu blog http://urubui.blogspot.com.br
sobre os episódios que envolveram a
violenta ocupação das terras dos waimiri-atroari
O recrudescimento contra os
waimiri-atroari nunca foi negado pelo regime militar
O indigenista e ex-missionário
Egydio Schwade, 76, revela os episódios que envolveram a violenta ocupação das
terras dos waimiri-atroari.
O indigenista e ex-missionário
Egydio Schwade, 76, revela os episódios que envolveram a violenta ocupação das
terras dos waimiri-atroari. (CLOVIS MIRANDA / ACRITICA)
Eles não estão na lista oficial de
desaparecidos políticos, nem de vítimas de violação de direitos humanos durante
o regime militar no Brasil, mas foram considerados empecilhos para o
desenvolvimento e guerrilheiros e inimigos do regime militar. Por resistirem à
construção de uma estrada (a BR-174, que liga Manaus a Boa Vista) que
atravessaria seu território, sofreram um massacre.
Entre 1972 e 1975, no Estado do
Amazonas, dois mil indígenas da etnia waimiri-atroari sumiram sem vestígios. Um
número infinitamente superior aos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia, no
Pará. Esta população cuja história permanece obscura ainda povoa a memória dos
sobreviventes waimiri-atroari (ou Kiña, como se autodenominam).
"O massacre aconteceu por
etapas e envolveu diferentes órgãos do regime militar", diz o indigenista
e ex-missionário Egydio Schwade, 76, um dos principais agentes da mobilização
que tenta tornar público este episódio e provocar a inclusão dos
waimiri-atroari nas investigações da Comissão Nacional da Verdade, criada em
novembro de 2011 pela Presidência da República.
Desde o início de 2011, Schwade
passou a divulgar uma série de artigos em seu blog http://urubui.blogspot.com.br
sobre os episódios que envolveram a violenta ocupação das terras dos
waimiri-atroari.
Panfleto
O recrudescimento contra os
waimiri-atroari nunca foi negado pelo regime militar. Registros sobre os
métodos dos militares para dissuadir (ou pacificar, como foi batizada a
estratégia de convencimento) os indígenas a aceitar a construção da estrada
estão em vários documentos e podem ser encontrados em declarações dadas a
jornais na época tanto por militares quanto por funcionários da Fundação
Nacional do Índio (Funai).
Panfleto denominado "Operação
Atroaris" que circulava na época, chegou a qualificá-los de
"guerrilheiros". Um trecho do panfleto, escrito em versos, dizia:
"Estais cercado, teus momentos estão contados; vê na operação esboçada que
o teu fim está próximo".
Alfabetização
Egydio Schwade teve acesso às
informações sobre o desaparecimento dos waimiri-atroari à medida que se tornava
mais próximo e ganhava a confiança dos indígenas no período em que viveu com
sua família na aldeia Yawará, onde chegou em 1985 e iniciou o processo de
alfabetização em Kiñayara, língua da etnia.
O indigenista, que reside no
município de Presidente Figueiredo e sobrevive como apicultor, conta que, após
dois anos vivendo entre os waimiri-atroari, foi expulso pela Funai. Ele
acredita que isto ocorreu justamente porque os indígenas começaram a revelar os
acontecimentos da época da construção da rodovia. Para ele, a Funai, tanto na
época quanto atualmente, foi omissa e até mesmo contribuiu com a opressão e a
violência contra os indígenas.
Silêncio
"Queremos que as populações
indígenas não sejam esquecidas pela Comissão da Verdade. Os waimiri-atroari,
assim como os Cinta Larga, em Roraima, os Parakanã, no Pará, e os Suruí, em
Rondônia, foram perseguidos pelo regime militar, que tinha como estratégia
ocupar suas terras. Os índios resistiram e foram mortos. Que seja neutralizado
o silêncio que domina estes casos", alerta Egydio Schwade.
Ele diz que o que o incomoda é o
silêncio da Funai em relação a este assunto, atualmente escondido por detrás
das ações mitigadoras que foram implementadas nos anos 80, com a criação do
Programa Waimiri-Atroari, uma parceria com a Eletronorte, como forma de
compensar os impactos ambientais e sociais causados pela construção da
Hidrelétrica de Balbina. A usina alagou grande parte do território dos
waimiri-atroari.
Funai
O Coordenador do Programa
Waimiri-Atroari, José Porfírio Carvalho, que é citado nos artigos de Egydio
Schwade e acusado de participação, como indigenista, nas ações contra os
waimiri-atroari, foi procurado por email (que consta no site do Programa
Waimiri-Atroari) três dias antes do fechamento desta matéria, mas não retornou
o contato. No telefone da sede do programa, 3632-1007, ninguém atendeu.
A assessoria de imprensa da Funai
também foi procurada e enviou a seguinte resposta: "A Funai está
acompanhando as discussões sobre o assunto e vai trabalhar pela defesa dos
direitos dos povos indígenas também nesse caso".
O decreto (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12528.htm) que criou
a Comissão Nacional da Verdade é de dezembro de 2011. A assessoria de imprensa
da Casa Civil da PR disse ao jornal A CRÍTICA que "quando a comissão
começar a investigar, serão analisados todos os casos de desaparecidos,
independente da etnia".
Neste mês, a Câmara dos Deputados
criou uma Comissão da Verdade paralela, como resposta à demora da Presidência
da República em demorar em instalar a Comissão Nacional da Verdade.
Pacificação
O projeto de construção da BR-174
(Manaus-Boa Vista), que era defendido pelo governador do Amazonas, Danilo
Areosa, começou em 1968. A obra passaria por dentro do território dos
indígenas, que não foram consultados e se opuseram ao empreendimento.
Paralelamente, foram iniciadas medidas de "pacificação" dos
indígenas, envolvendo padres (o mais conhecido foi o P. Calleri, morto pelos
índios) e indigenistas da Funai.
A estratégia envolvia tentativas de
diálogos, mas foi a presença de soldados e funcionários da Funai e o uso de
armas (metralhadoras, revólveres, dinamite e até gás letal) os principais meios
de "convencimento" dos indígenas.
Estimativa de população de
waimiri-atroari feita pelo P. Calleri era de 3 mil pessoas no final dos anos
60. Nos anos seguintes, este número baixou para mil pessoas, sem que um
registro de morte fosse feito, segundo Schwade.
A partir de 1974 as estatísticas da
Funai começaram a referir números entre 600 e mil pessoas e, em 1981, restavam
apenas 354, conforme pesquisa feita por Egydio.
Pelo menos uma das várias aldeias
desaparecidas foi bombardeada por gás letal. Um sobrevivente waimiri-atroari
que foi aluno de Egydio se recordou "do barulho do avião passando por cima
da aldeia e do pó que caia".
Nos anos 80, após a repercussão
internacional das mobilizações contra os impactos causados pela Hidrelétrica de
Balbina, o Banco Mundial condicionou o financiamento da obra, que alagou terras
dos waimiri-atroari, à criação de um programa de mitigação da sua população.
O programa começou a ser
implementado em 1988, com duração de 25 anos sob a gestão da Eletronorte. O
prazo expira em 2013. Após o programa, a população de waimiri-atroari voltou a
crescer.
O acesso aos waimiri-atroari é
difícil. A reportagem tenta desde o ano passado ir ao local, mas a resposta
recorrente da coordenação do Programa é que os indígenas "estão em festa
ou caçando".
Desaparecido
O único amazonense integrante da
lista oficial de desaparecidos durante a ditadura é o Thomaz Meirelles, nascido
em Parintins em 1937. Militante de esquerda, a última notícia que se soube de
Meirelles data de 1974.
A reportagem entrou em contato com
a viúva de Meirelles, a jornalista Miriam Malina, que vive atualmente no Rio de
Janeiro, mas ela não quis dar declarações sobre o assunto nem sobre a Comissão
da Verdade. Miriam afirmou que "enquanto não souber a composição da
Comissão" prefere não se manifestar.
Amigo e companheiro na época do
Centro Popular de Cultural, Euclides Coelho de Souza, 76, defende a urgência em
dar visibilidade ao desaparecimento de Meirelles, sobretudo entre os mais jovens.
"Ele foi um importante líder do movimento estudantil nos anos 60. Foi para
a luta e o mataram. Os estudantes do Amazonas precisam conhecer sua história.
Pressionar o poder público. Este assunto não pode ficar em brancas
nuvens", disse Souza, por telefone, do Paraná, onde mora.
Thomaz Meirelles morou em Manaus
desde 1950, mas no final daquela década se mudou para o Rio de Janeiro, onde
passou a se envolver com movimento estudantil. Fez parte da União Brasileira de
Estudantes Secundaristas (UBES). Em 1963 ganhou uma bolsa para uma faculdade em
Moscou, onde conheceu sua esposa. Quando retornou, seu envolvimento com o
movimento se intensificou. A perseguição política ficou mais dura e Meirelles
passou a viver na clandestinidade. Há informações de que foi torturado e então
desapareceu. Seu corpo nunca foi encontrado.