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segunda-feira, 23 de julho de 2012

Ano Zero


Marlene checou uma vez mais o endereço no cartão de visitas. "Doutor Oublier". Ali estavam suas esperanças últimas, haveria de dar certo. O tal consultório ficava em uma ruazinha escondida atrás da Central do Brasil, em um velho sobrado esquecido no tempo. Algo de "verde-mofo" na fachada, nenhuma placa. Só o número 5 na rua indicada. Passara a manhã revisitando pequenos guardados antes de sair...um caderno de tentativas poéticas, fotos que, de tão velhas, já estavam sépias, cores lavadas pelo tempo. Uma grande caixa estampada guardava um sem fim de emaranhado de fitas de cores muitas, adorava fitas. Sempre que recebia um presente, coisa meio que rara (e ainda mais com laço de fita...), invariavelmente, as guardava. Gostava de laços...Apesar da idade avançada, nem velha, nem menina, ainda adornava, vez por outra, seus cabelos escuros já riscados por alguns fios brancos com o tal adereço. O desse dia tão importante era azul como o céu que acompanhava seu ansioso percurso. Escolhera sua saia predileta: branca, rodada, com "poás" amarelos. Camisa branca bem cortada, sapatinhos de boneca, algo de blush nas faces naturalmente ruborizadas de expectativas. Na mão, uma bolsa vermelha. Marlene e seus contrastes...

Subiu num só fôlego as escadas que estalavam a cada pisada, como se fosse desabar. Deu de cara com uma porta aberta, onde já era esperada, para seu espanto. Um homem, nem feio, nem bonito; também nem velho, nem menino. Usava calças cinzas, sapatos gastos e suspensórios sobre uma camisa azul. Os óculos do tal Oublier eram  remendados com esparadrapo já meio ensebado pelo manuseio. Não recuou, apesar do desconforto inicial causado pela figura. Estava decidida. Olhou para os lados: paredes nuas, nenhuma gravura, nenhuma informação. Até que fazia algum sentido. Com um gesto, Oublier apontou uma linda poltrona floral, talvez o único objeto bonito naquela sala de um beje indefinível.

- O que a traz aqui? - começou o homem, já esperando como resposta o que quase todas as criaturas aflitas buscavam ao cruzar aquela porta.

-Paz.- respondeu Marlene. Por essa não esperava o tal "especialista".

-Como? Sou especialista em deletar memórias. Zerar experiências. Sou o mago do esquecimento, não acredito em superação de traumas. Paz?

-Oras, Doutor Oublier, paz! É a mesma coisa...tudo isso que o senhor disse ai para mim se resume em paz...Você pode limpar minha memória? Como um computador? Esvaziar a lixeira? Tem que ser irreversível.

-Mas ninguém quer esquecer tudo...

-Eu quero. Não queria ter que dar com a cabeça em um poste, por isso estou aqui. Me machucaria sem garantias de uma amnésia absoluta. Pode ou não pode?

-Posso. Minha sorte é que com esse esquecimento total, não há do que reclamar, nem com quem reclamar. Isso que me pede a fará esquecer até mesmo quem sou.

-Ótimo. É algum remédio? Me dê a receita, a fórmula...trouxe dinheiro.

-Não. Não lido com fármacos. Lido com a escuta. Um momento...

Oublier abaixou e pegou, embaixo de sua cadeira de madeira carcomida, um baú vazio. Abriu a caixinha, pousando-a sobre uma mesinha redonda ao lado de seu assento.

-Marlene seu nome, né? Pois bem, Marlene, me fale o que quiser. Fale o que te aflige mais. Fale tanto quanto possível. Por sorte, hoje só tenho você para atender...ficará tudo retido aqui. Não devolvo o baú de memórias, mas como já disse, você não vai mesmo se lembrar de nada. Com sorte, reaprenderá tudo, por caminhos novos. Lembrando que pessoas esquecidas são tidas como dementes.

-Sem problemas. Já sou tida como demente, mesmo tendo uma memória mais que razoável. Tanto faz. Nem sei se você é sério, mas não tenho tanto a perder.

-Então comece.

-Quero esquecer tudo.

-Filhos?

-Um só, já crescido, vivendo em outro país. Essa missão está cumprida. Quero esquecer o que sou, mas principalmente, o que nunca fui ou serei. Quero esquecer que sinto medo de quase tudo...mais! Quero esquecer que o medo existe. Quero esquecer as mentiras que me contaram...quero esquecer as mentiras que contei para mim mesma. Quero esquecer que nasci em um país repleto de mentiras e dor. Quero esquecer minhas fantasias, que muitas vezes, são as únicas razões de continuar viva e sofrendo por elas. Quero esquecer o que significa saudade. Quero esquecer que vivo em um mundo onde se ama quase sempre pela metade. Quero esquecer as porradas literais e simbólicas que, de tantas, nem sei quantas foram. Quero esquecer quem fez essa cicatriz que trago na testa. Quero esquecer meus pequenos prazeres, meus desenhos tortos, minha tara por doce de leite, minha vaidade rasa, minha carência infantil...quero esquecer meus amores enterrados em cemitérios e lembranças, as calúnias que me levaram o sono, meus momentos de ira que roubaram sonos alheios, minha família inexistente(................................), enfim, quero esquecer, muito mais do que sou, o que nunca fui e nunca serei (etc, etc).

Oublier era um homem frio, que não entrava em méritos de valor algum. Segurou-se muito para dizer que Marlene era muito, mas muito mais interessante que ela jamais poderia supor. Além de linda. Uma voz firme a agradável. Segurou-se! Não deixaria que aquele rosto soasse como um canto de sereia. Tinha uma reputação a zelar...não seria ela a primeira a voltar para reclamar a posse da própria história. Ele tinha um dom, e não se faria ausente à missão para a qual não cobrava um centavo sequer. Mas ainda tentou algo, com uma voz quase vacilante...

-Marlene...eu ainda não fechei o baú...quando isso acontecer, estará feito...acho que você já disse tudo que importa, o Sol até já se foi...é noite.

-Pois feche o baú.

-Entende que será como nascer agora em um corpo avançado em anos?

-Detalhe sem importância. Feche o baú.-Marlene estava absolutamente convicta.

Oublier fechou com um estranho pesar. Feito isso, Marlene assumiu o semblante de uma boneca de porcelana. Cumprindo um protocolo, o homem esvaziou sua bolsa de seus documentos. Dentro, deixou um espelho que pudesse ser um ponto de partida para uma possível nova vida. Ou ao menos, uma nova existência. Não fizera nada assim antes, mas Marlene...ah, Marlene deslocara algo estranho dentro dele. Gostaria, no íntimo, de ter falhado. Mas isso nunca (jamais!) acontecera antes. Todo mundo saía "deletado" dali.

-Pode ir, moça...

Marlene se levantou, desceu as escadas...andou sem rumo até o sol nascer de novo...foi encontrada por uma vizinha de prédio e conduzida à sua casa. Não diria palavra sequer, tampouco oferecia resistência. Ao fechar a porta atrás de si, já estava informada de se chamar Marlene. Deu de ombros, sentia cansaço. Passou pela cozinha. Uma maçã muito vermelha atraiu seu olhar virgem de registros significativos. O cheiro era bom...comeu a maçã e desabou em sono profundo.

Do outro lado da cidade, Oublier voltava da praia, onde jogava ao mar os baús dos agoniados que, por décadas, atravessavam sua porta em busca do "alívio". Ao entrar em seu quarto, deu de cara com o de Marlene. Uma semana se passava, e mais outra, e outros baús ganhavam o Oceano...menos o de Marlene. Às vezes, abria-o para sentir o cheiro da história daquela mulher tão...tão sabe-se lá, encantadora, talvez...As histórias contadas ganhavam forma material dentro daquelas caixinhas. Oublier não conseguia se privar do prazer de acarinhar um pedaço vermelho de fita de cetim...ou um sachê de chá de frutas cítricas...ou de ouvir aquela música que representara um dia, para aquela bela dama cansada,toda a dor do mundo. O que o "infalível" não sabia é que, cada visita ao museu particular daquela mulher, representava uma "fuga" das memórias retidas. Marlene voltava a se encantar por novas fitas, e numa manhã chuvosa, testava, pela "primeira vez", uma receita de maçã do amor...ao som de lindas músicas. Ao menos dele, ela não se lembrava...até então.

Claudia Tonelli