Marlene checou uma vez mais o endereço no
cartão de visitas. "Doutor Oublier". Ali estavam suas esperanças
últimas, haveria de dar certo. O tal consultório ficava em uma ruazinha
escondida atrás da Central do Brasil, em um velho sobrado esquecido no tempo.
Algo de "verde-mofo" na fachada, nenhuma placa. Só o número 5 na rua
indicada. Passara a manhã revisitando pequenos guardados antes de sair...um
caderno de tentativas poéticas, fotos que, de tão velhas, já estavam sépias,
cores lavadas pelo tempo. Uma grande caixa estampada guardava um sem fim de
emaranhado de fitas de cores muitas, adorava fitas. Sempre que recebia um
presente, coisa meio que rara (e ainda mais com laço de fita...),
invariavelmente, as guardava. Gostava de laços...Apesar da idade avançada, nem
velha, nem menina, ainda adornava, vez por outra, seus cabelos escuros já
riscados por alguns fios brancos com o tal adereço. O desse dia tão importante
era azul como o céu que acompanhava seu ansioso percurso. Escolhera sua saia
predileta: branca, rodada, com "poás" amarelos. Camisa branca bem
cortada, sapatinhos de boneca, algo de blush nas faces naturalmente ruborizadas
de expectativas. Na mão, uma bolsa vermelha. Marlene e seus contrastes...
Subiu num
só fôlego as escadas que estalavam a cada pisada, como se fosse desabar. Deu de
cara com uma porta aberta, onde já era esperada, para seu espanto. Um homem,
nem feio, nem bonito; também nem velho, nem menino. Usava calças cinzas,
sapatos gastos e suspensórios sobre uma camisa azul. Os óculos do tal Oublier
eram remendados com esparadrapo já meio
ensebado pelo manuseio. Não recuou, apesar do desconforto inicial causado pela
figura. Estava decidida. Olhou para os lados: paredes nuas, nenhuma gravura,
nenhuma informação. Até que fazia algum sentido. Com um gesto, Oublier apontou
uma linda poltrona floral, talvez o único objeto bonito naquela sala de um beje
indefinível.
- O que a
traz aqui? - começou o homem, já esperando como resposta o que quase todas as
criaturas aflitas buscavam ao cruzar aquela porta.
-Paz.- respondeu
Marlene. Por essa não esperava o tal "especialista".
-Como? Sou
especialista em deletar memórias. Zerar experiências. Sou o mago do
esquecimento, não acredito em superação de traumas. Paz?
-Oras,
Doutor Oublier, paz! É a mesma coisa...tudo isso que o senhor disse ai para mim
se resume em paz...Você pode limpar minha memória? Como um computador? Esvaziar
a lixeira? Tem que ser irreversível.
-Mas
ninguém quer esquecer tudo...
-Eu quero.
Não queria ter que dar com a cabeça em um poste, por isso estou aqui. Me
machucaria sem garantias de uma amnésia absoluta. Pode ou não pode?
-Posso.
Minha sorte é que com esse esquecimento total, não há do que reclamar, nem com
quem reclamar. Isso que me pede a fará esquecer até mesmo quem sou.
-Ótimo. É
algum remédio? Me dê a receita, a fórmula...trouxe dinheiro.
-Não. Não
lido com fármacos. Lido com a escuta. Um momento...
Oublier
abaixou e pegou, embaixo de sua cadeira de madeira carcomida, um baú vazio.
Abriu a caixinha, pousando-a sobre uma mesinha redonda ao lado de seu assento.
-Marlene
seu nome, né? Pois bem, Marlene, me fale o que quiser. Fale o que te aflige
mais. Fale tanto quanto possível. Por sorte, hoje só tenho você para
atender...ficará tudo retido aqui. Não devolvo o baú de memórias, mas como já
disse, você não vai mesmo se lembrar de nada. Com sorte, reaprenderá tudo, por
caminhos novos. Lembrando que pessoas esquecidas são tidas como dementes.
-Sem
problemas. Já sou tida como demente, mesmo tendo uma memória mais que razoável.
Tanto faz. Nem sei se você é sério, mas não tenho tanto a perder.
-Então
comece.
-Quero
esquecer tudo.
-Filhos?
-Um só, já
crescido, vivendo em outro país. Essa missão está cumprida. Quero esquecer o
que sou, mas principalmente, o que nunca fui ou serei. Quero esquecer que sinto
medo de quase tudo...mais! Quero esquecer que o medo existe. Quero esquecer as
mentiras que me contaram...quero esquecer as mentiras que contei para mim
mesma. Quero esquecer que nasci em um país repleto de mentiras e dor. Quero
esquecer minhas fantasias, que muitas vezes, são as únicas razões de continuar
viva e sofrendo por elas. Quero esquecer o que significa saudade. Quero
esquecer que vivo em um mundo onde se ama quase sempre pela metade. Quero
esquecer as porradas literais e simbólicas que, de tantas, nem sei quantas
foram. Quero esquecer quem fez essa cicatriz que trago na testa. Quero esquecer
meus pequenos prazeres, meus desenhos tortos, minha tara por doce de leite,
minha vaidade rasa, minha carência infantil...quero esquecer meus amores
enterrados em cemitérios e lembranças, as calúnias que me levaram o sono, meus
momentos de ira que roubaram sonos alheios, minha família
inexistente(................................), enfim, quero esquecer, muito
mais do que sou, o que nunca fui e nunca serei (etc, etc).
Oublier era
um homem frio, que não entrava em méritos de valor algum. Segurou-se muito para
dizer que Marlene era muito, mas muito mais interessante que ela jamais poderia
supor. Além de linda. Uma voz firme a agradável. Segurou-se! Não deixaria que
aquele rosto soasse como um canto de sereia. Tinha uma reputação a zelar...não
seria ela a primeira a voltar para reclamar a posse da própria história. Ele
tinha um dom, e não se faria ausente à missão para a qual não cobrava um
centavo sequer. Mas ainda tentou algo, com uma voz quase vacilante...
-Marlene...eu
ainda não fechei o baú...quando isso acontecer, estará feito...acho que você já
disse tudo que importa, o Sol até já se foi...é noite.
-Pois feche
o baú.
-Entende
que será como nascer agora em um corpo avançado em anos?
-Detalhe
sem importância. Feche o baú.-Marlene estava absolutamente convicta.
Oublier
fechou com um estranho pesar. Feito isso, Marlene assumiu o semblante de uma
boneca de porcelana. Cumprindo um protocolo, o homem esvaziou sua bolsa de seus
documentos. Dentro, deixou um espelho que pudesse ser um ponto de partida para
uma possível nova vida. Ou ao menos, uma nova existência. Não fizera nada assim
antes, mas Marlene...ah, Marlene deslocara algo estranho dentro dele. Gostaria,
no íntimo, de ter falhado. Mas isso nunca (jamais!) acontecera antes. Todo
mundo saía "deletado" dali.
-Pode ir,
moça...
Marlene se
levantou, desceu as escadas...andou sem rumo até o sol nascer de novo...foi
encontrada por uma vizinha de prédio e conduzida à sua casa. Não diria palavra
sequer, tampouco oferecia resistência. Ao fechar a porta atrás de si, já estava
informada de se chamar Marlene. Deu de ombros, sentia cansaço. Passou pela
cozinha. Uma maçã muito vermelha atraiu seu olhar virgem de registros
significativos. O cheiro era bom...comeu a maçã e desabou em sono profundo.
Do outro
lado da cidade, Oublier voltava da praia, onde jogava ao mar os baús dos
agoniados que, por décadas, atravessavam sua porta em busca do
"alívio". Ao entrar em seu quarto, deu de cara com o de Marlene. Uma
semana se passava, e mais outra, e outros baús ganhavam o Oceano...menos o de
Marlene. Às vezes, abria-o para sentir o cheiro da história daquela mulher
tão...tão sabe-se lá, encantadora, talvez...As histórias contadas ganhavam
forma material dentro daquelas caixinhas. Oublier não conseguia se privar do
prazer de acarinhar um pedaço vermelho de fita de cetim...ou um sachê de chá de
frutas cítricas...ou de ouvir aquela música que representara um dia, para
aquela bela dama cansada,toda a dor do mundo. O que o "infalível" não
sabia é que, cada visita ao museu particular daquela mulher, representava uma
"fuga" das memórias retidas. Marlene voltava a se encantar por novas
fitas, e numa manhã chuvosa, testava, pela "primeira vez", uma
receita de maçã do amor...ao som de lindas músicas. Ao menos dele, ela não se
lembrava...até então.