A estatística
dos 3 aeroportos a serem privatizados (Guarulhos, Brasília e Campinas) reflete
bem a realidade do que vai ser subtraído do setor público. Eles são
responsáveis por 30% do total dos passageiros, 57% do total das cargas e 19%
das aeronaves em todo o País.
Paulo Kliass
O próximo fim de
semana certamente será palco de muitas reuniões a portas fechadas, encontros
discretos e momentos de tensão. Não me refiro aqui aos efeitos da violenta
desocupação de Pinheirinho, nem às repercussões da desastrada operação na
Cracolândia e muito menos à retomada dos trabalhos no Congresso Nacional. Na
verdade, trata-se da tentativa de ressuscitar o nada saudoso processo de
privatização de bens e serviços públicos aqui em nosso País. Eis mais uma
incongruência que o governo traz à agenda, uma medida tão polêmica quanto
anacrônica nos mundos de hoje, em que alguns dos principais dogmas do
neoliberalismo estão sendo colocados em xeque, até mesmo por seus ideólogos nos
países centrais. Mas aqui em solo tupiniquim, as coisas parecem funcionar ao
revés. A bola da vez é a Infraero, empresa pública que se encarrega da gestão e
operação dos aeroportos em todo o território nacional.
O “lobby” pela
privatização dos aeroportos
O pesado “lobby”
que atua a favor da privatização dos serviços aeroportuários é antigo e
conhecido. Desde os tempos de ouro da hegemonia da agenda do Consenso de
Washington que os representantes do setor privado vêem com olhos gordos essa
verdadeira mina de fazer dinheiro fácil, às custas do monopólio dos bens
públicos. Nos tempos em que o discurso contra a presença do Estado na atividade
econômica era considerado irreparável esse foi um setor que conseguiu resistir
e não ser repassado à exploração pelo capital. Uma das razões para tal fato
refere-se, sem sombra de dúvida, à natureza estratégica dos aeroportos e de sua
tangência evidente com as questões de segurança e soberania nacionais.
E, ao que tudo
indica, setores expressivos das Forças Armadas nunca foram muito simpáticos à
idéia de transferir tal atividade ao setor privado. Mas os interesses
empresariais não haviam desistido de tal projeto e estavam apenas à espreita
para saltar em cena no momento adequado. Quis a ironia da historia, que tal
oportunidade fosse oferecida, assim de bandeja, justamente por um governo
comandado pelo Partido dos Trabalhadores.
O caminho foi
sendo pavimentado aos poucos, sem muita pressa. Todos nos lembramos da forma
como os meios de comunicação têm tratado a questão do chamado “apagão aéreo” ao
longo dos últimos anos. É preciso reconhecer que o quadro dos aeroportos tem
ficado cada vez mais crítico. Mas isso ocorreu por um verdadeiro sucateamento a
que foi submetido o setor. Ou seja, a situação a que chegaram os aeroportos
brasileiros contou com a conivência do próprio Estado. A política de arrocho
orçamentário e de cortes nas rubricas de investimento em infra-estrutura
contribuiu para aprofundar as dificuldades de oferta de condições adequadas
para a operação aeroportuária em nosso País. No entanto, a versão oferecida para
a maioria da população, como sempre, acentua apenas a suposta incapacidade do
setor público em gerir o setor com padrões de eficiência. A solução seria a bem
conhecida panacéia para todos os males: transferir para o setor privado. Aliás,
estamos cansados de assistir às demonstrações de tal eficácia do capital na
crise atual que assola o planeta. Na hora do aperto, sempre grita pela ajuda do
Estado!
Por outro lado,
a realização da Copa do Mundo em 2014 e os compromissos assumidos pelo Brasil
perante a FIFA e a comunidade internacional passaram a atuar como elemento de
reforço da versão catastrofista. E mais uma vez o discurso em favor da
eficiência do setor privado prevalece. O tempo é curto, as necessidades são
urgentes, não existe alternativa viável que não seja a privatização - os
argumentos se repetem. Assim, em função de um fluxo aéreo extraordinário e
concentrado durante tão somente um mês da competição, decide-se por transferir
toda a operação dos aeroportos, por décadas, para o capital privado.
O leilão marcado
para dia 6/2
Agora a cena
toda está montada para a segunda-feira, dia 6 de fevereiro, quando deverão ser
realizados os leilões para a privatização de alguns dos principais aeroportos
do Brasil. Apesar de todos os protestos e manifestações contrárias ao processo
por parte de entidades do movimento sindical, de especialistas na matéria, de
órgãos da sociedade civil organizada e até mesmo do Tribunal de Contas da União
(TCU), o governo permaneceu irredutível na manutenção da data e das condições
previamente estabelecidas desde meados do ano passado.
Serão leiloadas
as concessões dos aeroportos de Guarulhos (SP), Brasília (DF) e Campinas (SP).
Esses três são considerados dentre os mais rentáveis e os menos problemáticos
de todo o conjunto da Infraero. As condições são as melhores possíveis para os
interessados. Tanto que o preço inicial solicitado no leilão do aeroporto de
São Gonçalo do Amarante (RN) foi largamente superado durante o leilão realizado
em agosto de 2011. Naquela espécie de experiência piloto dessa nova onda de
privatização, o valor pago pelo consórcio vencedor foi quase 230% superior ao
preço inicial fixado pelo governo.
Guarulhos tem um
lance mínimo fixado em R$ 3,4 bilhões, com concessão de 20 anos. Viracopos tem
um valor inicial estipulado em R$ 1,5 bilhão e prazo de uso de 30 anos.
Brasília teve o lance mínimo arbitrado em R$ 582 milhões, com prazo de uso de
30 anos. As regras prevêem que seja formada uma Sociedade de Propósito
Específico (SPE) com o objetivo de gerir o excelente negócio. Na verdade,
trata-se de um eufemismo jurídico para a famosa Parceria Público Privada (PPP),
onde o capital privado fica com 51% dos votos e a Infraero com 49%. Como há
necessidade de realizar investimentos para ampliação e modernização, com
certeza a SPE receberá empréstimos do BNDES e de outras fontes federais com
todas as facilidades e juros subsidiados. E o que mais impressiona é que o
edital admite até mesmo a possibilidade de participação de empresas
estrangeiras na gestão dos aeroportos. Uma verdadeira irresponsabilidade, dada
a natureza estratégica desse tipo de atividade e os riscos envolvidos com a
questão de segurança nacional.
O Estado tem
recursos para investir
O principal
argumento utilizado pelo governo para lançar mão da privatização é a tão
propalada falta de verbas para investimento. Porém, a verdade dos fatos
desmente essa versão enganosa. Recursos sobram no Orçamento! O problema é a
prioridade definida pelas autoridades para sua utilização. Encerradas as contas
de 2011, por exemplo, apurou-se que o Estado brasileiro forçou a geração de um
superávit primário no valor de R$ 130 bilhões ao longo do ano. Uma loucura!
Mais de 3% do PIB destinados exclusivamente para o pagamento de juros da dívida
pública. Um número que se revela 30% mais elevado do que o superávit de 2011. E
agora basta uma simples comparação. A operação de privatização desses 3
aeroportos vai render R$ 240 milhões por ano aos cofres da União. Ou seja, se
houvesse destinado apenas minguados 0,2% do superávit a cada ano para esse
importante compromisso, não precisaria transferir a concessão dos aeroportos ao
capital privado. Mas a vida é feita de escolhas. E elas revelam a essência de
nossas verdadeiras vontades.
A Infraero é
responsável pela gestão de 66 aeroportos em todo o território nacional, Eles
representam 97% do movimento do transporte aéreo regular, o que corresponde a
2,6 milhões de pouso e decolagens, transportando mais de 155 milhões de
passageiros por ano. Como esse serviço não é o mercado da batatinha (“não
gostei do serviço, vou aqui no aeroporto da esquina”...), a SPE tem assegurada
a renda das tarifas por passageiro embarcado e aeronave na pista. Um negócio
com perspectivas crescentes de ganho e rentabilidade, inclusive porque em 2011,
pela primeira vez, a população brasileira passou a utilizar mais o avião do que
o ônibus para o transporte interestadual.
Apesar de todas
estas evidências, a opção foi de repassar à exploração privada os aeroportos
mais promissores, sem nenhuma exigência de contrapartida, como a
responsabilização do consórcio ganhador por aeroportos de menor fluxo, mas de
grande importância no trânsito regional. É o caso das unidades da Amazônia, por
exemplo. A estatística dos 3 aeroportos a serem privatizados reflete bem a
realidade do que vai ser subtraído do setor público. Eles são responsáveis por
30% do total dos passageiros, 57% do total das cargas e 19% das aeronaves em
todo o País. Assim, fica claro que a Infraero deverá perder parcela
significativa de sua fonte de receitas, pois boa parte dos demais aeroportos
apresenta baixo faturamento, que tem como principal fonte as taxas
aeroportuárias cobradas das empresas e dos passageiros.
Assim, a
pergunta que todos nos fazemos é simples e direta: por que a Presidenta Dilma
decidiu, então, pela privatização? Como os argumentos relativos à escassez de
recursos não resistem ao exame atento dos números do orçamento, a única
explicação plausível é de que ela teria sido convencida de que a gestão
aeroportuária não seria mesmo uma atividade típica de Estado. E aí o quadro
ficaria bem mais complicado, abrindo margem para especulação a respeito da
existência de lista contendo outros setores que poderiam vir a sofrer o mesmo
tratamento.
Paulo Kliass é
Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo
federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
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