O
PINHEIRINHO
O fato é
tão simples como estarrecedor. 9.600 (nove mil e seiscentas) pessoas vivem, há
8 (oito) anos, em um bairro da cidade de São José dos Campos conhecido como
Pinheirinho. Estas pessoas são, todas, cidadãs de uma República cuja
constituição, em seu artigo 6o, assegura, dentre outros, o direito fundamental
à moradia, entendido como cláusula pétrea, ou seja, como garantia insusceptível
de redução, senão mediante um golpe de Estado.
O terreno
habitado por esses seres humanos não cumpria, até que eles ali chegassem, a sua
função social. A mesma Constituição da República, em seu artigo 5o, também
definido como cláusula que não se altera, condiciona a validade normativa do
direito de propriedade ao cumprimento da respectiva função social. É
majoritária, entre os constitucionalistas, a tese de que a referida dimensão
funcional do direito à propriedade não se configura como limite (a exemplo dos
direitos de vizinhança, servidões obrigatórias, etc.), mas como componente
deontológica da situação proprietária. Em suma: sem obediência à função social,
não há direito de propriedade válido neste país.
A massa
falida de uma empresa chamada Selecta, cuja propriedade fora de um nababo
detido em duas ocasiões por crimes de ordem fiscal e financeira, ostenta
documentos que, formalmente, indicariam sua propriedade sobre o terreno onde as
milhares de pessoas acima referidas possuem as respectivas moradias há quase um
decênio. Ao solene arrepio do aspecto funcional do direito à propriedade
privada, o Poder Judiciário do Estado de São Paulo optou por negar às famílias
seu local de habitação, em favor da pessoa jurídica que, possivelmente,
continuaria a manter, ali, um grande espaço vazio, transpondo a materialidade
de uma vila com gente, comércio, igreja e histórias humanas em frio ativo que
valorizaria o patrimônio de alguém, ao sabor das inexoráveis pressões
inflacionárias do mercado imobiliário, definido pela inelasticidade da oferta.
Em síntese: o Poder Judiciário malferiu dois artigos asseguradores de direitos
fundamentais da Constituição (quinto e sexto), para expulsar pessoas humanas do
seus lares, de modo a garantir que milionários aumentassem seus patrimônios. A
prefeitura do município de São José dos Campos, assim como o Governo do Estado
de São Paulo, endossaram tal prática.
Os
moradores do bairro do Pinheirinho resistiram e, como resultado de sua abnegada
luta, conquistaram, dentre outras vitórias, o interesse da União em considerar
a desapropriação do terreno e, subsequentemente, implementar um projeto
habitacional no local, política pública que contaria, dentre outras medidas,
com a regularização fundiária da ocupação. Em suma, o Governo Federal,
devidamente pressionado por ativistas e pela sociedade civil, acenou com a
possibilidade de cumprir parte de suas obrigações prescritas no artigo 3o,
inciso III, do Estatuto das Cidades, no que não fora acompanhado,
lamentavelmente, pelos governos do Estado e do Município, os quais optaram por
permanecer na ilegalidade.
De qualquer
modo, tendo em vista o interesse jurídico da União na conflituosa questão, haja
vista a necessidade de cumprimento do já citado artigo do Estatuto das Cidades,
fez-se necessária a inclusão da Advocacia Geral da União - AGU no processo
judicial e, por conseguinte, em respeito ao artigo 109 da Constituição, o
deslocamento do feito para a Justiça Federal. Como consequência do
desaforamento do processo em relação à Justiça Estadual de São Paulo, o
Tribunal Regional Federal, órgão da Justiça Federal de 2a Instância, impôs a
suspensão da ilegal determinação de despejo das 9,6 mil pessoas humanas que
habitam o Pinheirinho, de modo a subtrair eficácia e validade de qualquer
decisão sobre a matéria proferida no âmbito da justiça comum.
Ocorre,
todavia, que não há juízes nesta Berlim proto-nazista sob a qual vivem os
brasileiros do século XXI. Uma decisão judicial estadual de 1a Instância
determinou que, em 22 de janeiro de 2012, as 9,6 mil pessoas fossem subtraídas
do seu direito fundamental à moradia, em favor de uma massa falida que pretende
manter o imóvel vazio, à espera de valorização ociosa incompatível com o
princípio da função social da propriedade. É preciso que a situação fique bem
clara: uma decisão judicial de 1a instância transgrediu um despacho da Justiça
Federal de 2a instância e, ato contínuo, foi devidamente obedecida pelo Governo
de São Paulo e sua Polícia Militar. Tudo para que quase 10 mil pessoas fossem,
como ratos, jogadas nas ruas, sem destino, sem dignidade, sem direito a nada.
Mas a
tragédia é ainda pior. O advogado das famílias despejadas foi ilegalmente
detido. Um Senador da República (Eduardo Suplicy – PT/SP), um Deputado Federal
(Ivan Valente – PSOL/SP) e um presidente de partido (Zé Maria de Almeida –
PSTU/SP), foram ilegalmente sitiados em uma escola localizada nas proximidades
do Bairro Pinheirinho e, dali, impedidos de sair, em clara situação de prisão
ilegal. E, até aqui, início da tarde de 22 de janeiro, há relatos (ainda
sujeitos à devida confirmação) de que houve vítimas fatais. A se confirmar tão
trágica notícia, tratam-se de histórias de vida interrompidas pela ação bárbara
de um Estado que não atua mais próximo da legalidade do que qualquer bando ou
quadrilha. O certo é que pessoas foram retiradas de seus lares por bandidos
perigosos, armados, sustentados por impostos adimplidos por todos os cidadãos e
que atuam ao arrepio da Lei, tal como concretamente prescrita pelo Tribunal
Regional Federal da 3a Região. Sem respaldo normativo, sem qualquer direito,
sem nenhuma adequação à legalidade, como qualquer milícia ou grupo do crime organizado,
o assim-chamado Poder Público irrompe contra uma válida decisão do Tribunal
Regional Federal, aprisiona parlamentares, detém advogados (ao arrepio do
artigo 7o da Lei 8.906) e impõe a barbárie, a selvageria e o terror contra 9,6
mil pessoas humanas que queriam apenas viver sob um teto e contar com um lugar
para voltar, após extenuantes jornadas de trabalho. É a violência pura e sem
discurso de justificação qualquer... Um horror de tal maneira nefasto, que só
pode ser comparado aos mais virulentos atos do nazi-fascismo no Século XX.
Não se sabe
o destino das famílias. Não se sabe quantas pessoas estão mortas e feridas
neste momento. Sabe-se que a decisão de desocupação foi flagrantemente ilegal,
bem como que a truculência militar e as detenções de líderes, parlamentares e
advogados demonstram o caráter político-golpista do ocorrido. Certamente, as
autoridades responsáveis por tamanha atrocidade não serão responsabilizadas.
Possivelmente, além de desabrigados e humilhados em sua dignidades, muitos dos cidadãos
hoje expulsos ilegalmente de suas moradias serão alvo de ações penais em razão
da alegada prática de tipos criminais como desacato, dano ou qualquer outra
conduta escolhida pelo seletivo aparato estatal. E é bem provável que aqueles
que redigem textos como este revivam o drama de Émile Zola e tenham suas
condutas capituladas em algum crime contra a honra.
Apenas uma
lição deve ser extraída de tão dolorosa tragédia: o Estado Democrático de
Direito é uma mentira. A legalidade é tão somente um artefato ideológico
utilizado seletivamente para justificar o uso do arbítrio e da violência contra
a classe social que produz, em favor da classe que parasita a humanidade. Não
há qualquer cânone hermenêutico que explique a prática jurisdicional dos nossos
tribunais, senão o meta-cânone da dominação de classe. É triste e muito, mas
muito sofrido, aprender que um jovem alemão do século XIX, formado em direito e
que com este sistema se decepcionara ainda na juventude, estava integralmente
correto quando asseverou, em um misto de incitação com vaticínio, que “a
emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. Ceifaram
as rosas do Pinheirinho, mas não impedirão a primavera da vitória do povo
oprimido!
Francisco
Mata Machado Tavares
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